domingo, 14 de junho de 2015

Aslam e a Terra das Sombras

 

Esse tema se baseia em uma passagem do ultimo livro das Crônicas de Nárnia, A última Batalha, que na ocasião, é narrado o momento em que Pedro se encontra na “Verdadeira Nárnia”, e se lembra de que Aslam havia dito que eles, os mais velhos (No caso Pedro, Susana etc...), não voltariam mais para Nárnia. Essa lembrança deixou Pedro meio confuso, pois se a palavra de Aslam era verdadeira, por que ele se encontrava em Nárnia naquele momento? Será que Aslam havia mentido, ou se enganado? Digory vai explicar que na verdade quando Aslam disse que eles não regressariam mais para Nárnia, Ele (Aslam) estava se referindo à antiga Nárnia, aquela que tinha historicamente um começo e um fim, e que era de fato apenas uma sombra ou cópia da verdadeira Nárnia que sempre esteve e sempre estará ali, pois é eterna. Digory explica que Pedro, naquele momento, não estava na antiga Nárnia, à qual Aslam disse que eles não voltariam mais, mas na verdadeira da qual a antiga era apenas um reflexo. Vejamos como o diálogo acontece no livro:


– Mas como? ! – disse Pedro. – Aslam disse que nós, os mais velhos, nunca mais regressaríamos a Nárnia; e aqui estamos nós!

– Isso mesmo – concordou Eustáquio. – E vimos tudo ser destruído o sol se apagar.
– E tudo é tão diferente! – acrescentou Lúcia.
– A águia tem razão – disse Lorde Digory. – Ouça Pedro. Quando Aslam disse que vocês nunca mais poderiam voltar a Nárnia, ele se referia à Nárnia em que vocês estavam pensando. Aquela, porém, não era a verdadeira Nárnia. Ela teve um começo e um fim. Era apenas uma sombra, uma cópia da verdadeira Nárnia que sempre existiu e sempre existirá aqui, da mesma forma que o nosso mundo é apenas uma sombra ou uma cópia de algo do verdadeiro mundo de Aslam.[1]

Para convencer Pedro e os demais de que a antiga Nárnia é somente uma sombra da verdadeira, Digory usa um exemplo muito interessante, ele pede que imaginemos que estamos em uma casa, olhando pela janela uma linda paisagem, um riacho com florestas, ou algo semelhante, e na parede oposta à janela tem um espelho que reflete a imagem da mesma paisagem de maneira fiel, diante disso surge a pergunta: Qual a diferença entre as duas paisagens? Digory diz que embora elas sejam semelhantes, ao mesmo tempo, porém, elas são diferentes; segundo ele a paisagem real é mais viva, mais maravilhosa, mais alegre. A diferença entre a Nárnia antiga e a nova era algo assim. Os campos da nova Nárnia eram muito mais vivos: cada rocha, cada flor, cada folhinha de grama parecia ter um significado ainda maior.

McGrath observa que, “Um tema central de muitos escritos de Lewis é que nós vivemos em um mundo que é uma sombra brilhante de algo maior e melhor, o mundo atual é uma cópia ou sombra do mundo real”[2]. Quando lemos a Última Batalha percebemos que Lewis acreditava que esse mundo não era nossa morada definitiva, mas simplesmente um lugar por onde passaríamos antes de retornar para o nosso verdadeiro lar, podemos perceber isso na fala do Unicórnio quando ele expressa a alegria que estava sentindo dizendo:

– Finalmente voltei para casa! Este, sim, é o meu verdadeiro lar! Aqui é o meu lugar. É esta a terra pela qual tenho aspirado à vida inteira, embora até agora não a conhecesse. A razão por que amávamos a antiga Nárnia é que ela, às vezes, se parecia um pouquinho com isto aqui. – E acrescentou, soltando um longo relincho: – Avancemos! Continuemos subindo![3]


Quando Confuso diz que havia aspirado por aquela terra a sua vida inteira, ele estava expressando o argumento do desejo, ou anseio usado por Lewis em alguns de seus escritos. Esse argumento diz que existe em nós um desejo que nada nesse mundo pode satisfazer. Um desejo de algo que está muito além de nós, e que todos os momentos alegres aqui são simplesmente indicadores da verdadeira alegria que ansiamos encontrar neste lugar. Alister McGrath comentando sobre esse assunto diz que, “Vivemos na terra das sombras, onde ouvimos ecos da música do céu, captamos suas cores vibrantes e discernimos sua suave fragrância no ar que respiramos, mas não se trata da realidade em si; é um sinal indicador de direção que com excessiva facilidade é tomado como a realidade”[4]. Essa alegria é uma sensação aguda de estarmos desabrigados, é a sensação de que neste mundo somos tratados como estranhos, como forasteiros e peregrinos[5]. Segundo Duriez “Nas Crônicas, esse desejo misterioso é, de modo geral, mais intensamente associado à presença, ou mesmo a insinuação da presença, de Aslam, o Leão-Criador”[6] Podemos ver isso nas Crônicas de maneira clara:


Talvez já ocorreu às vezes para você em um sonho que alguém diz algo que você não entende, mas no sonho parece que isso tinha um enorme significado – quer um amedrontador que transforma todo o sonho em pesadelo, quer ainda um significado adorável, belo demais para ser expresso em palavras, que torna o sonho tão lindo que você se recorda dele por toda a vida e fica sempre desejando poder ter esse sonho novamente. Agora, era essa e sensação das crianças. Ao ouvir o nome de Aslam, cada uma das crianças sente algo pular em seu interior... Suzana sentia como se algum cheiro agradável ou alguma melodia maravilhosa tivesse acabado de pairar ao lado dela. E Lúcia teve a sensação que você tem quando acorda de manhã de percebe que é o inicio das férias ou do verão[7]


A Bíblia nos diz que somos peregrinos e estrangeiros em terra estranha, e nos alerta, que essa não é a nossa morada. Temos uma pátria, e desejamos uma cidade cujo arquiteto e construtor é o próprio Deus. Assim como Abraão que residiu como estrangeiro na Terra Prometida, assim como Isaque e Jacó; participantes da mesma promessa e esperavam a cidade; cujo artífice e construtor é o próprio Deus, e pela fé, creram nas promessas, e confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra (Hb 11,9-13) Assim também nós vivemos aguardando o dia em que iremos para nossa verdadeira morada. Paulo disse que “A nossa pátria está nos céus, donde também aguardamos um Salvador, o Senhor Jesus Cristo”(Fp 3.20). E Pedro confirmou dizendo “Amados, exorto-vos como a peregrinos e forasteiros” (1 Pe 2.11). O escritor aos hebreus diz que os heróis da fé, Abraão. Isaque e Jacó habitaram em terra alheia e não se lembraram de sua antiga pátria porque desejavam uma melhor, isto é, a celestial de maneira que Deus já lhes preparou uma cidade. (Hb 11. 15-16) Jesus disse “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, e crede também em mim, na casa de meu pai há muitas moradas, se não fosse assim, eu vo-lo teria dito, pois vou preparar-vos lugar, e se eu for e vos preparar lugar, virei outra vez e vos levarei para mim mesmo, para que, onde eu estiver, estejais vós também” (Jo 14.1-2)

Mas diante disso tudo surge uma questão interessante. Quando analisamos o fato de que não podemos desejar o que não existe, somos obrigados a concluir que aquilo que desejamos deve necessariamente existir, pois se não existisse não poderia ser desejado. Ripchip desejava encontrar o país de Aslam porque ele existia em algum lugar, pois se não existisse ele não o desejaria. “Assim como o fato de termos sede é prova de que somos criaturas para as quais é natural beber água, também o fato de desejarmos um objeto que nosso mundo natural não pode suprir sugere a existência de outro mundo, ou seja, um mundo sobrenatural”[8], mundo esse que desejamos ansiosamente encontrar. Assim como a mulher que varreu a casa para encontrar a dracma perdida e festejou quando a encontrou, vivemos a procura de um mundo que parece que perdemos, desejamos algo mais fundamental que o prazer, a prosperidade ou o poder. O nosso coração está desesperado para voltar ao jardim, Lewis expressa isso quando diz: “Nossa perpétua nostalgia, nosso desejo de nos reunirmos a algo do universo do qual sentimos que fomos cortados, o estar do lado de dentro de alguma porta que sempre vimos do lado e fora, não são meras fantasias neuróticas, mas o mais verdadeiro indicador de nossa situação real”[9]. Colin Duriez comentando sobre isso diz que, “Esta sensação de estarmos desabrigados, que para Lewis é invariavelmente, um indicador para o Céu, é vividamente capturada nas Crônicas, na devoção de Shasta pelas terras do norte no episódio O Cavalo e o Seu Menino e no desejo do camundongo Ripchip de encontrar o país de Aslam na história A Viagem do Peregrino da Alvorada”[10]  Vasconcellos concordando com essa ideia diz que em diversos pontos das Crônicas de Nárnia, a busca pela felicidade humana equivale a este anseio por Deus e seu Reino. Neste sentido, ser feliz – isto é, possuir um sentido para a própria existência, que garanta significado tanto no agora quanto na eternidade – é encontrar a Deus. Como o próprio Lewis afirmou, Deus não pode dar-nos uma felicidade e uma paz independentes d’Ele, simplesmente porque não existem. Toda essa busca encontra, finalmente, sua resposta mais completa e infinitamente perfeita quando todos alcançam a terra de Aslam – a verdadeira Nárnia.[11] 

Nas Crônicas de Nárnia o Céu está associado ao país de Aslam, que representa a verdadeira Nárnia, da qual a antiga era uma sombra. Essa ideia é desenvolvida por Platão em seu Mito da Caverna, aonde ele retrata alguns homens acorrentados em uma caverna desde quando nasceram. Essas pessoas nunca viram o mundo real, mas somente as sombras das coisas refletidas no fundo da caverna, devido um fogo que arde em um canto da caverna, para eles o mundo das sombras é o verdadeiro, a realidade para essas pessoas está limitada ao que se consegue enxergar e experimentar nessa caverna escura. O mundo que eles pensam ser o real não passa de sombras. “Lewis explora essa ideia por meio de sua distinção entre o mundo superior e o mundo inferior em A Cadeira de Prata, os habitantes do mundo inferior, como as pessoas presas na caverna de Platão, acreditam que não existe outra realidade, quando o Príncipe narniano fala de um mundo superior, iluminado pelo sol a feiticeira diz que ele está simplesmente inventando”.[12]

A Última Batalha e a chegada do Anticristo


Para entendermos melhor esse assunto é bom começarmos do começo. A Última
Batalha é como se fosse o livro de Apocalipse das escrituras, nele encontramos um Anticristo, e muitos outros sinais que estão registrados na Bíblia, como o sol envelhecer e a lua se tornar como sangue e o julgamento final. O próprio Lewis respondendo a uma criança por nome de Anne diz que, “A Última Batalha narra a chegada de Manhoso o macaco do Anticristo, levando ao vaticinado fim do mundo e ao Dia do julgamento final”[13].
Cabe ressaltarmos que, Lewis não tem a pretensão de desenvolver uma interpretação escatológica aos moldes teológicos convencionais, por isso não é bom tentar enquadra-lo em nenhuma escola escatológica como, Pré, Pós ou Meso-tribulacionista, e assim por diante; primeiro porque ele não era um teólogo profissional[14], e, segundo porque ele acreditava que essas interpretações são secundárias se comparadas à realidade[15], ou seja, o fato em si é mais importante do que a forma como o interpretamos, pois se ele não existisse não haveria o que se interpretar. McGRATH diz que, tais reflexões não contradizem a real adoção de uma teoria dessa natureza; elas simplesmente contextualizam a teoria, insistindo em que este é um plano ou diagrama que “não se deve confundir com o fato em si”.[16]
 A trama narrada em A Última Batalha é iniciada com a história de um macaco por nome Manhoso. Esse macaco é descrito por Lewis como o mais enrugado, feio e astuto que se possa imaginar. Ele tinha um vizinho, que também era seu amigo, cujo nome era Confuso. Confuso era um jumento que mais parecia ser um empregado de Manhoso do que seu amigo de fato, era ele quem fazia todo serviço, enquanto Manhoso simplesmente olhava. Quando precisavam de mantimento era Confuso que descia com os cestos vazio à venda, e voltava com eles cheios e pesados, porém quem comia as melhores coisas era Manhoso. Confuso era um jumento que tinha complexo de inferioridade, ele não se considerava inteligente e achava que era muita bondade de Manhoso o aceitar como amigo, embora ele fosse, na verdade, mais um escravo que amigo. Manhoso era astuto e aproveitador, ele utilizou da inocência do jumento para submetê-lo às suas vontades.
Lewis narra que certo dia fazendo uma caminhada, Manhoso avista algo estranho no lago, e faz com que Confuso pule na água e busque o objeto misterioso, para que ele pudesse ver. Quando Confuso volta com o objeto, Manhoso percebe que era uma pele de Leão, e logo lhe surge uma ideia macabra. Como ele sabia que todos viviam aguardando a volta de Aslam ele decidiu vestir Confuso com a pele de Leão, a fim de que ele pudesse fingir ser Aslam. A intenção de Manhoso era dominar sobre todos. Quando assumiu o poder Manhoso começou a praticar coisas terríveis, como escravizar os animais falantes, derrubar as árvores sagradas de Nárnia, firmar uma aliança com os Calormanos, e tudo isso, em nome do “Aslam”. Quase todos acreditavam que era Aslam que havia chegado e estava ordenando todos aqueles acontecimentos, mesmo que fossem ruins. Há uma relação direta do “Anti-aslam”, ou seja, aquele que se colocou no lugar de Aslam, com o Anticristo apresentado na Bíblia sagrada. As Escrituras dizem que nos últimos tempos, surgirá alguém dizendo ser ele o próprio Cristo, assim como Manhoso dizia que Confuso era Aslam, Ele, o anticristo, vai querer ser adorado como Deus e se posicionará contra tudo aquilo que se chama Deus ou se adora, assim como o Anti-aslam fez, ele mandou escravizar os animais falantes, algo que não podia acontecer, começou a derrubar as árvores sagradas de Nárnia sem se importar com ninguém a não ser ele mesmo, e quem se posicionasse contra ele sofria as consequências. Paulo falando sobre o anticristo em 2 Tessalonicenses 2.3-4  diz: “Ninguém, de maneira alguma, vos engane, porque não será assim sem que antes venha a apostasia e se manifeste o homem do pecado, o filho da perdição, o qual se opõe e se levanta contra tudo o que se chama Deus ou se adora; de sorte que se assentará, como Deus, no templo de Deus, querendo parecer Deus”.

Quase no final do livro vamos perceber que o verdadeiro Aslam aparece, e juntamente com ele, aqueles que já haviam morrido, como Pedro, Eustáquio, Digory etc.. Para marcar o início do fim Aslam levanta a cabeça e rosna:

– O tempo é chegado. Agora! Tempo! – E depois rosnou mais alto. – Tempo! – E depois tão alto que até as estrelas estremeceram: – TEMPO!

Nessa imagem podemos ver as estrelas caindo

e o Senhor tempo tocando a trombeta
Então a porta se abriu.[17]

Aslam e o Juízo Final


Aslam desperta o gigante tempo e diz que enquanto ele dormia o seu nome era tempo, mas agora ele terá outro nome (quem sabe eternidade) o gigante toca uma trombeta e as estrelas começaram a cair do céu, assim como no livro de Apocalipse, onde diz que haverá toque de trombetas marcando os juízos e as estrelas cairão do céu, vejamos o que o versículo diz:
“E as estrelas do céu caíram sobre a terra, como quando a figueira lança de si os seus figos verdes, abalada por um vento forte.”[18]. A diferença é que as estrelas em Nárnia não são bolas de fogo incandescente, mas sim, pessoas. Levando em consideração o fato de que uma estrela é centena de vezes maior que a terra, a Bíblia não pode estar referindo á estrelas em seu modo literal, levando alguns a interpretar o termo “estrelas” como asteroides como Jim Bakker que diz: “A palavra que João utilizou, na língua grega, para descrever as “estrelas do céu” caindo na terra foi a palavra ásteres, da qual deriva a nossa palavra asteroide”[19]  outros a interpretam como sendo seres angelicais, baseando-se em Apocalipse 1.20b “As sete estrelas são os anjos das sete igrejas” algo que se aproximaria muito bem do que é descrito nas Crônicas de Nárnia.
Embora haja muita divergência alguns concordam com essa interpretação, MacDonald diz que os comentaristas propõem várias explicações para anjos. Para alguns, eram seres angelicais que representavam as igrejas, da mesma forma como anjos representam as nações (Dn 10:13, 20-21)[20]
Após a descrição das estrelas caindo começa o Juízo Final em Nárnia. O livro narra que uma multidão de animais, homens e muitas outras criaturas começaram a aparecer aos milhões.


- Finalmente, saindo da sombra [das árvores e correndo vertiginosamente colina

acima] para salvar a vida, aos milhares e aos milhões, surgiram criaturas de todos os tipos: animais falantes, anões, sátiros, faunos, gigantes, Calormanos, homens da Arquelândia, monópodes e até seres estranhos seres sobrenaturais, vindos das ilhas solitárias ou das terras desconhecidas do Ocidente.”[21]


Nessa citação há uma relação com a narrativa do Juízo Final das Escrituras, onde é dito que uma multidão incontável estará na frente do Trono Branco para ser julgada por Jesus, O Leão de Judá. “E vi um grande trono branco e o que estava assentado sobre ele, de cuja presença fugiu a terra e o céu, e não se achou lugar para eles”.[22] Quem está assentado nesse trono é o próprio Jesus, ele mesmo disse que o Pai a ninguém julga, mas deu ao filho todo juízo[23]. Assim como Aslam julgou os habitantes de Nárnia, um dia Jesus também julgará a humanidade.

Toda aquela multidão estava vindo em direção à Aslam e ao chegarem perto dele, no entanto, uma entre duas coisas se passava com cada pessoa dela. Todas olhavam direto para a face do Leão (aliás, acho que nem havia alternativa). Quando algumas olhavam, a expressão de seus rostos mudava terrivelmente, com uma mistura de temor e ódio, exceto na cara dos animais falantes: nestes, tanto temor quanto ódio duravam apenas uma fração de segundos, pois, na mesma hora, deixavam de ser animais falantes, tornando-se simples animais comuns. E todas as criaturas que olhavam para Aslam daquele jeito desviavam-se para a direita (isto é, à esquerda dele), desaparecendo no meio da sua imensa sombra negra, que (como já lhes disse) se espraiava para a esquerda, do lado de fora do portal. As crianças nunca mais viram essas criaturas. Não sei o que se passou com elas. Outras, porém, olhavam para a face de Aslam e o amavam, embora algumas ficassem ao mesmo tempo muito assustadas. E todas essas criaturas entravam pela Porta, colocando-se ao lado direito de Aslam.[24] Jesus, em Mateus 25.31, relata algo similar:

“E, quando o Filho do Homem vier em sua glória, e todos os santos anjos, com ele, então, se assentará no trono da sua glória, e todas as nações serão reunidas diante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas. E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda.”[25]

Vasconcellos concorda e diz que “Em a Última Batalha, o juízo de Nárnia possui uma grande semelhança com o julgamento anunciado por Jesus em Mateus 25.31-34 e a separação entre justos e injustos, salvos e perdidos, à direita e à esquerda de Cristo.[26] É claro que algumas escolas escatológicas, como a que eu sigo, interpreta esse acontecimento como sendo distinto do Juízo final. O julgamento de Mateus 25 seria o julgamento das nações gentílicas e o de Apocalipse o julgamento dos mortos, William MacDonald expressa isso: Essa divisão descreve o julgamento das nações, que se distingue do tribunal de Cristo e do julgamento do grande trono branco. O tribunal de Cristo, um tempo de revista e galardão somente para os crentes, realiza-se depois do arrebatamento (Rm 14:10; 1Co 3:11-15; 2Co 5:9-10). O julgamento do grande trono branco realiza-se na eternidade, depois do milênio. Os mortos perversos serão julgados e lançados no lago de fogo (Ap 20:11-15). O julgamento das nações gentílicas realiza-se na terra, depois que Cristo vier para reinar.[27] Mas como eu disse no início não pretendo defender interpretações escatológicas aqui.

Uma coisa interessante é que as pessoas que estão ali não conseguiam ter uma noção clara do tempo:


“Ninguém podia dizer quanto tempo durara. Às vezes tinha se a impressão de que durara apenas alguns minutos, mas outras vezes parecia que se haviam passado anos e anos.”[28]


Além do tempo não passar normalmente como de costume, outra coisa interessante acontecia. Em Nárnia há uma ressureição dos mortos, assim como haverá na volta de Jesus, podemos notar isso nesta passagem aonde fala do momento em que Tirian se reuni com seus amigos na Nova Nárnia:


“Entre as felizes criaturas que agora se reuniam ao redor de Tirian e de seus amigos, encontravam-se todos aqueles que ele julgara estarem mortos.”[29]

A Bíblia ensina que quando Jesus voltar os mortos ressuscitarão, vemos isso em várias passagens como:

1 Tessalonicenses 4.16: “Porque o mesmo senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com trombeta de Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro”

1 Coríntios 15.52: “num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a ultima trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados”

Apocalipse 20.5-6: “Mas os outros mortos não reviveram, até que os mil anos se acabaram, esta é a primeira ressureição. Bem-aventurado e santo aquele que tem parte na primeira ressureição; sobre estes não tem poder a segunda morte, mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com ele mil anos.

Os que se precipitavam para a direita de Aslam entravam no seu país, ou seja, o céu, e os que se precipitavam para esquerda iam para o as sombras. (inferno). A Bíblia fala de um novo céu e uma nova terra também:
“E vi um novo Céu e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe.”[30] Esse novo céu será um lugar de alegria e felicidade, pois lá não haverá morte, nem pranto, nem clamor, nem dor, porque já as primeiras coisas são passadas.[31] Lá não mais sofreremos e viveremos eternamente com Deus, mas não pense que lá será um lugar de passividade, pois teremos muita coisa a fazer lá.[32] O céu é o lugar aonde encontraremos a felicidade que tanto buscamos, John Piper diz:

O anelo de ser feliz é uma experiência humana universal e é bom, não pecaminoso. Nunca devemos procurar negar nosso anelo de ser felizes nem resistir a ele, como se fosse um impulso ruim. Em vez disso, devemos procurar intensificar esse anelo e nutri-lo como o tudo que venha a proporcionar a satisfação mais profunda e duradoura. A felicidade mais profunda e duradoura se encontra somente em Deus[33]

O homem foi feito por Deus e só nele pode encontrar a paz que necessita, Agostinho em suas Confissões declara: “Ó senhor, Criaste-nos para vós, e nosso coração vive inquieto, enquanto não repousar em vós.”[34]

Por possuir liberdade as criaturas podem escolher o caminho que tomarão. Os que rejeitam Aslam vão para sua esquerda e perdem o dom da fala como consequência de rejeitar seu criador, apenas em Aslam as criaturas possuem o dom da fala, sem ele elas são incompletas.[35] Os que aceitam Aslam ficam do seu lado direito. Markos diz: “Se o dom divino do livre arbítrio é verdadeiro, raciocina Lewis então Ele deve permitir-nos rejeitar Seu amor, mas, se Deus é onipresente, aonde as almas que perderam todo desejo de estar em sua presença poderiam ir? A resposta trágica, porém lógica, para esse enigma é que Deus reservou o inferno como único lugar do universo do qual sua presença direta foi retirada, se desejarmos ser deixados em paz, o senhor irá ignorar-nos; se escolhermos a nós mesmos e nosso pecado, em vez de Deus e o Céu, ele irá deixar-nos em nossa terrível liberdade escravizadora”.[36] A conciliação da liberdade humana e soberania divina é algo que causa muitos debates. Em As Crônicas podemos ver que, a atemporalidade de Aslam é combinada, de modo seguro, com retratos da livre escolha dos personagens.

Aslam diz que nada pode fazer com o tio André, o mago, “Pois ele se fez incapaz de ouvir minha voz”. Quando Lúcia pede a Aslam que salve Edmundo, Aslam responde: “Tudo será feito”, mas pode ser “mais difícil do que você pensa”, Aslam chega a dizer a Rabadash que esqueça o seu orgulho e aceite a misericórdia, para evitar a fatalidade, mas Rabadash escolhe a destruição, assim, o verdadeiro livre arbítrio não é determinado pelo conhecimento atemporal de Aslam nem por qualquer outra capacidade.[37] No fim de tudo há só dois tipos de pessoas, diz Lewis, aqueles que dizem pra Deus “Seja feita a tua vontade”, e àqueles a quem Deus diz: “Seja feita a tua vontade”.

Para Lewis o inferno é como um pântano para o qual escorregamos a cada pequeno pecado, sempre que escolhemos a nós mesmos, ou aos nossos pecados, estamos renunciando um pouco da humanidade que ainda resta em nós, esse processo continua até chegar um ponto em que não há mais nada de humano em nós, Lewis mostra esse processo em Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, aonde Fitafuso, o demônio experiente, instrui seu sobrinho Vermebile, dizendo:

Não importa o quão desprezíveis sejam os pecados, contanto que a seu efeito cumulativo seja a condução do homem cada vez mais para longe da luz e para dentro do nada. Um assassinato não será melhor que um jogo de cartas se as cartas derem conta do recado. Com efeito, o caminho mais seguro para o inferno é o gradual – A ladeira suave, com chão suave, sem curvas acentuadas, sem marcos de quilometragem e sem placas de sinalização (carta 12)[38]

Baseado em Mateus 25.41 aonde diz que o inferno foi criado para satanás e seus anjos, Lewis conclui que não haverá nenhum homem no inferno. Ele acredita que o pecado destrói a humanidade da pessoa, fazendo com que ela se torne somente pecado, ele expressa isso em “O Grande Abismo”, aonde em determinado momento ele começa a ouvir a alma de uma mulher condenada, uma idosa tagarela, que resmungava sem parar, e não ouvia nem seu guia  que estava tentando resgata-la. Lewis conclui que ela não era uma pessoa má, mas apenas uma resmungona, diante disso George MacDonald, que é o guia de Lewis, diz que essa é a questão. Será que essa mulher seria somente uma murmuradora, ou ela haveria se transformado em murmuração? Ela não estava ali porque murmurava, mas sim, porque a murmuração havia tomado conta do seu ser, de maneira que toda humanidade que existia nela havia se esgotado. Ela havia renunciado a sua humanidade quando deixou que a murmuração a dominasse. George MacDonald diz para Lewis: “Se tão somente tivesse restado uma brasa de humanidade dentro dela, os anjos poderiam alimentar a chama até que ela brilhasse outra vez. Contudo, se tudo o que restou foram cinzas, nada pode ser feito”.[39] O problema com essa mulher não é que ela está fora do alcance da salvação, pois a graça de Deus é poderosa, mas que não  há algo mais a ser salvo.[40]

Após o julgamento todos ficam felizes na Nova Nárnia vendo a sua beleza e comentando como ela é mais bela que a antiga como Lúcia bem observa:

– Agora estou entendendo – disse ela. – Isto aqui ainda é Nárnia, e muito mais real e formosa do que aquela Nárnia lá embaixo, da mesma forma que aquela parecia bem mais real e bonita do que a Nárnia que se via do lado de fora da porta do estábulo. Agora estou entendendo... Um mundo dentro de outro mundo, uma Nárnia dentro de uma outra Nárnia...[41]

Após andar um pouco admirando Nárnia eles se encontram com Aslam, que vai explicar para Pedro, Edmundo, Digory etc... Que eles haviam morrido em um acidente de trem, e foi isso que os levou até ali, Aslam lhes disse:

– Aconteceu mesmo um acidente com o trem – explicou Aslam. – Seu pai, sua mãe e todos vocês estão mortos, como se costuma dizer nas Terras Sombrias. Acabaram-se as aulas: chegaram as férias! Acabou-se o sonho: rompeu a manhã! E, à medida que Ele falava, já não lhes parecia mais um leão. E as coisas que começaram a acontecer a partir daquele momento eram tão lindas e grandiosas que não consigo descrevê-las. Para nós, este é o fim de todas as histórias, e podemos dizer, com absoluta certeza, que todos viveram felizes para sempre. Para eles, porém, este foi apenas o começo da Verdadeira história. Toda a vida deles neste mundo e todas as suas aventuras em Nárnia haviam sido apenas a capa e a primeira página do livro. Agora, finalmente, estavam começando o Capítulo Um da Grande História que ninguém na terra jamais leu: a história que continua eternamente e na qual cada capítulo é muito melhor do que o anterior.[42]


Notas 




[1] LEWIS, C.S. As Crônicas de Nárnia. Tradução Silêda Steuernagel Paulo Mendes Campos; Ilustração Pauline. 2.ed. São Paulo; Martins Fontes. 2009. P 729.
[2] MACGRATH, Alister. Conversando com C.S. Lewis; Tradução Sandra Martha Dolinsky. – 1.ed. – São Paulo: Planeta, 2014, p 183.
[3] LEWIS, C.S. 2009, p. 730.
[4] MACGRATH, Alister. Do Ateísmo às Terras de Nárnia. Mundo Cristão. 2013. P. 313.
[5] 1 Pedro 2.11
[6] Colin Duriez. Manual Prático de Nárnia. Novo Século editora. 2005. P 78.
[7] C.S. Lewis Apud Colin Duriez. 2005, p. 78.
[8] Louis Markos. Apologética cristã para o Século 21. Central Gospel. 2013. P 29.
[9] C.S. Lewis Apud TADA, Joni Eareckson, Céu Verdadeiro Lar, Tradução Lena Aranha. – São Paulo: Shedd Publicações, 2006. P 148.
[10] Colin Duriez. 2005. P 76. 
[11] VASCONCELLOS, Marcio. O Canto de Aslam.- São Paulo: Editora Reflexão- 2010. P 153-154.
[12] MACGRATH, Alister. 2013. P 314.
[13] C.S. Lewis Apud Colin Duriez. 2005, p 65.
[14] De acordo com Alister McGrath, “Antes de considerarmos essa questão, precisamos entender que Lewis não era um teólogo profissional nem um especialista do debate histórico dessa questão no debate histórico no seio da tradição cristã”. (MACGRATH, Alister. 2013, p. 305)
[15] Segundo McGrath, “Lewis argumenta que qualquer teoria da expiação é secundária se comparada à realidade” (MACGRATH, Alister. 2013, p. 305).  Quando se converteu Lewis pensava que todos cristãos tinham que ter uma interpretação da expiação, algo que ele notou posteriormente que era secundário. O importante não é o que interpretamos da expiação, mas sim, o fato de ela ter acontecido verdadeiramente.  Nesse caso aplico o mesmo princípio para interpretar a escatologia de Lewis. O mais importante não é o momento que ele (Jesus) virá, antes da grande tribulação, ou depois dela, ou talvez no meio. O importante é que ele virá e julgará o ímpio e recompensará o justo. Há divergências dos teólogos sobre quando se dará a sua volta, mas todo teólogo sério acredita que ele voltará. (Maranata)
[16] MACGRATH, Alister. 2013, p. 307. Nesse contexto McGRATH está tratando das interpretações voltadas para a expiação, entretanto, aplico-as também no campo escatológico, pois, por decorrência lógica de raciocínio, creio que Lewis tinha uma mesma visão a respeito do assunto.
[17] LEWIS, C.S. 2009, p 717.
[18] Apocalipse 6.13
[19] BAKKER, Jim. A droutrina da prosperidade e o apocalipse. Tradução Darci Dusilek. 1.ed. São Paulo; Ed. Bom Pastor. 2001. P 202.
[20] MACDONALD, William. Comentário bíblico popular – Antigo e Novo Testamento. São Paulo; Mundo Cristão, 2011, P 996.
[21] LEWIS, C.S. 2009, p. 720.
[22] Apocalipse 20.11
[23] João 5.22
[24] LEWIS, C.S. 2009, p. 720.
[25] Mateus 25. 31.
[26] Id. 2010. P 158
[27] MACDONALD, William. Comentário bíblico popular – Antigo e Novo Testamento. São Paulo; Mundo Cristão, 2011, p. 93.
[28] LEWIS, C.S. 2009, p. 720
[29] LEWIS, C.S. 2009, p. 721.
[30] Apocalipse 21.1
[31] Apocalipse 21.4
[32] Apocalipse 22.3
[33]John Piper. Desejar a Deus. P 23. Apud. GEISLER, Norman L. Fundamentos Inabaláveis. Tradução Heber Carlos de Campos. – São Paulo; Ed. Vida. 2003, p 373.
[34] Santo Agostinho vida e obra. Editora Nova Cultura Ltda, 2004, p. 37.
[35] 2010. P 159.
[36] Louis Markos. 2013, p. 69-70.
[37] As Crônicas de Nárnia e a filosofia. O leão a Feiticeira e a visão de mundo. Coordenação William Irwin. Madras. 2006, pp. 205-206.
[38] Cartas de um diabo a seu aprendiz (carta 12) Apud. Louis Markos. 2013, p. 71.
[39] LEWIS, C.S. O Grande Abismo. Tradução Ana Schaffer.- São Paulo: Editora Vida, 2009. P 90.
[40] Louis Markos. 2013, p. 72.
[41] LEWIS, C.S. 2009, p. 735.
[42] LEWIS, C.S. 2009, p. 737.

2 comentários:

  1. muito bom comentário! Amei. Para mim da mesma forma falar das Crônicas de Nárnia é falar de um mundo fantástico além da ilusão. As crônicas é tão real quanto este mundo presente é apenas um sono que vindo a morte acordamos. Já li as crônicas umas 7 vezes e cada vez que leio aprendo algo novo para meu cotidiano. Não consigo ler as crônicas e não avistar Deus, toda vez que pronuncio o nome Aslam o grande leão de Nárnia minha mente se remete ao Cristo vivo e real que o nosso leão de Judá.

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  2. Muito top .... Excelente texto nem sei o que Dizer somente que Deus continue te dando sabedoria e conhecimento!

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